O maior vilão das ultras não é o cansaço. É o músculo quebrado
(A melhor coisa que você vai ler hoje)
Se correr por horas fosse só sobre VO2, todo ciclista ganharia uma ultra.
"Decoding Ultramarathon: Muscle Damage as the Main Impediment to Performance", publicado na revista Sports Medicine em 2024 por Nicholas Tiller e Guillaume Millet, é o estudo mais completo que temos hoje sobre o que, de fato, limita a performance nas ultramaratonas.
E o que eles encontraram muda tudo que muita gente ainda acredita sobre correr longe e bem (menos quem ouve minhas lives e podcasts a tempos…).
Por que isso importa pra você?
Se você já correu uma ultra (ou pretende se aventurar e uma), sabe disso na pele: a mente quer seguir, o fôlego aguenta, mas a perna trava. Não é "falta de treino". É dano muscular acumulado. É o colapso mecânico do motor.
Esse estudo mostra que o principal limitador não é o VO₂máx, nem a economia de corrida, nem a alimentação.
É o músculo danificado. É a fadiga periférica.
E entender isso é o primeiro passo para mudar/melhorar seu treino — e o seu resultado.
Ultramaratonas não são "só maratonas mais longas"
A maratona tem seus pilares bem definidos: VO₂máx, limiar de lactato e economia de corrida.
Mas a ultra... ah, a ultra é um universo mais caótico.
50 km? 100 milhas? 300 km em autosuficiência? Provas em altitudes extremas, temperaturas que derretem ou congelam, subidas que viram escaladas, descidas que destroem quadríceps...
O corpo passa horas — às vezes dias — sendo moído por impacto repetitivo, sono quebrado, déficit calórico, desidratação e sobrecarga mental.
E no centro de tudo isso, está a degradação muscular.
Como o estudo foi feito?
Os autores não fizeram um único experimento. Eles compilaram mais de uma década de estudos, revisões sistemáticas e evidências de campo, com foco nos principais fatores que limitam a performance em ultras.
Eles cruzaram:
Análises laboratoriais de VO₂máx e economia de corrida
Avaliações bioquímicas (creatina quinase, mioglobina, LDH)
Testes de força voluntária e estimulação elétrica/magnética dos músculos
Medidas de percepção de esforço
Dados de performance em provas icônicas como UTMB, Western States e Hardrock 100
O objetivo? Identificar o que mais limita o desempenho de quem tenta correr MUITO.
O que eles descobriram?
1. O VO₂máx ainda importa… mas menos do que pensamos
Em maratonas, o VO₂máx explica até 60% da performance.
Nas ultras? Cai drasticamente. Por quê?
Porque o ritmo é mais lento. O uso de gordura como fonte de energia aumenta. E o que realmente define o ritmo é a capacidade de manter a musculatura funcionando por horas ou dias — mesmo em estado de dano.
2. A descida é mais perigosa que a subida
Parece contraditório, mas é verdade.
As subidas exigem mais energia, sim. Mas as descidas são biomecanicamente destrutivas. Elas envolvem contrações excêntricas — aquelas em que o músculo alonga enquanto tenta frear o movimento. Isso rasga fibras, literalmente.
E a cada quilômetro de descida acumulada, a destruição aumenta — mesmo se você estiver “descendo devagar”.
3. O dano muscular é mensurável — e brutal
Em provas de ultra:
A força máxima do quadríceps pode cair mais de 40% após a linha de chegada
A creatina quinase (CK) pode passar de 20.000 UI/L (sendo que o normal é <200!)
A perda de força continua por 3 a 10 dias após o fim da prova
A resposta neuromuscular (avaliada por eletroestimulação) mostra que parte da fadiga é central (cérebro e nervo) e parte periférica (músculo e placas motoras)
O que isso significa na prática?
Significa que, mesmo com o coração funcionando bem e energia disponível, o músculo simplesmente para de responder como antes.
4. A maioria dos corredores subestima a fadiga periférica
Os próprios atletas entrevistados apontaram que:
66% acreditam que a fadiga muscular foi o maior limitador da performance
78% relatam perda progressiva de força nas pernas
A maioria tem dificuldade em gerenciar o esforço nas descidas
Como se proteger desse vilão invisível?
O estudo não só diagnostica o problema — ele dá estratégias práticas para treinar a resistência ao dano muscular.
🧠 1. Treinamento específico com descidas
Inclua corridas longas com trechos técnicos em descida. Comece com pouco volume e vá aumentando. A exposição progressiva ao estímulo excêntrico reduz o impacto do dano nas provas — um efeito chamado de “Efeito protetor da carga repetida”.
🥾 2. Uso de bastões
Principalmente em provas com longas descidas, os bastões distribuem o esforço, aliviando parte da carga do quadríceps (Sim, bastões nas descidas…tem outros artigos chamando a atenção sobre isso por aqui, acompanhe meus outros artigos).
👣 3. Técnica de corrida nas descidas
Passada mais curta
Tronco levemente inclinado
Pés tocando o chão sob o centro de gravidade
Evita o impacto freado, que é o mais lesivo.
🔬 4. Monitoramento com exames
CK, LDH, Mioglobina: ajudam a avaliar o grau de dano pós-prova ou em treinos longos
Testes de força voluntária e eletroestimulação: mostram o quanto da fadiga é muscular vs. neural
Se você compete sério, isso pode guiar sua periodização e recuperação (isso é mais teórico do que prático, mas nao poderia deixar de citar, vá que você tem acesso..)
🍳 5. Nutrição e recuperação
Embora a nutrição não previna diretamente o dano, ela ajuda o músculo a regenerar mais rápido. Consuma proteína de forma consistente e foque em anti-inflamatórios naturais (frutas vermelhas, cúrcuma, ômega-3).
Uma analogia simples:
Imagine que você tem um carro de corrida com motor potente (VO₂ alto). Mas o eixo traseiro (seus músculos) está rachado.
Quanto tempo você acha que aguenta na pista?
É isso que a maioria dos corredores ignora. Treina potência, mas esquece da durabilidade estrutural.
A grande virada na preparação para ultras
O estudo de Tiller e Millet escancara o que muitos já sentiam, mas não sabiam explicar: nas ultras, o maior desafio não é o cardio — é o colapso progressivo da máquina muscular.
A performance depende da tolerância ao dano, da habilidade de continuar mesmo com dor, e da estratégia para evitar que esse dano te pare antes da linha de chegada.
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Aqui a gente prepara seu corpo e mente pra encarar qualquer tipo de prova — e chegar inteiro no final.
Me conta nos comentários:
Você já sentiu seu corpo falhar antes da mente em uma ultra? Como lidou com isso?
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Pode ter alguém precisando descobrir o que tá realmente travando a performance.
Referência:
Tiller, N. B., & Millet, G. Y. (2024). Decoding Ultramarathon: Muscle Damage as the Main Impediment to Performance. Sports Medicine